Contos de NC - O Doutor
15/05/14, 08:44 pm
O Doutor
- Capitulo 1 - Expurgação:
- 1985
— As coisas estão estranhas.
— Por quê?
— Eu não sei. Eu tô com essa sensação esquisita...
— ... Você tá doente?
— Doente? Não sei o que é isso.
— Geralmente quando eu me sinto esquisito, minha mãe me dá remédio.
— Você É esquisito.
— "Você É esquisito".
— O quê?
— "O quê"?
— Você está me repetindo?
— "Você está me repetindo?"
— Isso é bobo.
— "Isso é bobo"!
Segue-se então um silêncio. O garoto de cabelos loiros e lisos sorri de orelha a orelha, de maneira convencida, pressupondo sua suposta vitória na “discussão”. Ele então se recosta na parede branca e desbotada atrás dele, e observa o céu noturno, e as estrelas.
— ... Terminou?
— Eu quero brincar de alguma coisa--
— Hugo. Tá falando com quem?
De repente, um homem magro surge no terreno, vindo da parte de trás da casa; ele também era loiro e usava bermuda e camiseta. O menino parece não escutar o adulto, que continua a esperar por alguma resposta, se irritando.
— HUGO! — Ele chama novamente.
— ... Oi! — O garoto se vira na direção da voz, vendo o homem.
— Com quem você tá conversando?
— Com o Vylak, pai.
— Quem?!
— Meu amigo! É ele aqui ó! — O garoto aponta pro lado, e o pai não vê ninguém.
— Que amigo? Entra pra dentro menino. Se eu pegar você falando com estranhos, você vai apanhar.
— Mas eu não estou falando com--
— Entra pra dentro! — Repete o homem, de forma mais agressiva.
O menino vira novamente para o lado em que apontou. Após alguns instantes, emburrado, ele se levanta e corre na direção do pai, passando por ele e adentrando a casa.
O homem retira do bolso de trás um maço de cigarros, e com o isqueiro na sua mão direita ele acende um cigarro na boca. Ele coça sua barba por fazer e observa o local, procurando por alguém ali. Ele vai até os cantos mais escuros do terreno, e depois volta até o portão da casa, vendo ninguém em nenhum dos dois lugares.
— Seu filho tá conversando com amigos imaginários agora.
— Ele é seu filho também, Roberto.
O homem adentra a casa, vendo a mãe do garoto sentada no sofá, de frente pra televisão preta e branca.
— Esse menino não devia tá dormindo à uma hora dessas? — Pergunta ele, assoprando a fumaça do cigarro pra fora dos pulmões.
— Eu acho difícil que tenha qualquer pessoa dormindo em um momento como esse.
Ela aponta com a mão pra TV, que passava um apresentador de telejornal, em meio à uma notícia.
"-- Completamente cercado de militares, que tentam conter a situação aqui em Brasília.
— Mesmo sob a ameaça de perdermos nossas concessões de transmissão, iremos continuar noticiando nesse exato momento a situação de caos, em que se encontra a capital do país nesse exato momento.
— Há diversos relatos chegando à nossa emissora de que manifestantes estão tomando as ruas, dezenas deles entrando em conflito diretamente com batalhões de soldados, numa tentativa de aumentar a revolta civil e apoiar os vigilantes--"
De repente, Roberto desliga a televisão.
— Já chega, Silvia.
— Roberto! Eu estava assistindo--
— Se você está tão preocupado com esses moleques fazendo baderna em Brasília, porque você não vai pra lá pro meio deles?
— Poisé, eu devia ter feito algo de bom com a minha vida como eles ao invés de ter me envolvido com um imprestável como você... — Ela diz, se levantando do sofá.
— Eu sou o imprestável? E o seu filho, que nem cuidar você cuida?! Ele tá correndo por aí no meio da noite quando deveria tá dorm--
— VOCÊ deveria cuidar do seu filho também, Roberto, e não ficar ai fumando DENTRO DE CASA!
O casal começa a discutir — algo que eles fazem com frequência —, e a troca de ódio entre os dois fica cada vez mais alta, podendo ser ouvida até mesmo dos outros cômodos.
Hugo, que observava a discussão que ocorria da entrada do seu quarto, fecha a porta atrás dele, abafando um pouco do som. Ele não acende a luz e caminha lentamente pelo seu quarto completamente escuro. Porém, ele não parecia estar cegado pela escuridão; muito pelo contrário, ele parecia nem mesmo notar que o lugar estava escuro.
Sob os olhos de Hugo, tudo era diferente.
Era como se ele estivesse em outra dimensão. Nada era como uma pessoa comum enxerga: tudo se movia, tudo era vibrante, vivo. As paredes eram como rios, fluindo cada uma em uma direção diferente, em um tom levemente roxo; mas ao mesmo tempo, eram transparentes, todas elas. Ele podia ver até o horizonte se quisesse, se excluísse todas as outras coisas que se passavam ao mesmo tempo.
Olhando para qualquer direção, ele podia ver pequenos vórtices de luz, como galáxias ao longe, e podia ver dois "tufões" de luzes coloridas por perto, o que seriam o seu pai e a sua mãe. Havia uma "bolha" de eletricidade que circundava cada um dos corpos, e outro que englobava os dois juntos, e assim suscetivamente, em basicamente todo o lugar que ele olhasse.
Olhando para a própria mão, ele podia ver todas as suas articulações, suas veias, seus músculos, os impulsos elétricos que passavam por ela; podia ver também que ele mesmo emitia grandes pontos de luz, vindos do seu torso, de cima a baixo, como botões.
Subindo na cama — que não emitia muita coisa além do que parecia ser poeira cósmica brilhante —, ele se deita e se cobre até o pescoço, fechando os olhos. Porém, apenas as coisas mais superficiais desaparecem, como as paredes e os objetos mais próximos à ele. Ele ainda podia ver o fundo infinito, que parecia mudar de cor gradativamente entre tons de roxo e azul escuro, e diversos pontos de luz fracos espalhados.
Os sons do ambiente ao seu redor vão sumindo à medida que ele vai pegando no sono, mas em dado momento, ele ouve algo.
— Hugo.
Ele abre os olhos novamente, e vê algo logo acima de si mesmo se formar. Começa como um bola de gude rosa, que logo vai crescendo e se formando, até se mostrar ser na verdade uma bola de carne. A bola de carne gira sobre si mesma, gradativamente crescendo e se "abrindo", formando diversas formas e padrões confusos, até parar de se expandir em certo momento, mas continuando a girar e se mover, como uma cobra se enrolando em si mesma.
O garoto então imediatamente reconhece "aquilo":
— Vylak...?
— Hugo, vim me despedir.
— Não precisa ir agora, Vylak. Você pode ficar até eu acordar... — Responde o menino, com uma voz de sono.
— Não posso. Tem algo vindo.
— O que é? É os espíritos maus? Você pode se esconder aqui comigo.
— Não, Hugo. Não são os espíritos maus. Eu acho que é algo que pode me atingir, e não posso ficar.
— ... — O menino fica calado por alguns instantes, finalmente respondendo fraco. — ... Ok.
— ... Hugo?
O garoto loiro havia caído no sono.
Um fraco horizonte se acende em meio à escuridão, em cor verde clara. Junto dele, como cometas, feixes brancos aparecem pelo céu , que giram e se espalham, mostrando o formato "tubular" do espaço ao seu redor, como se estivesse em um poço, olhando pra cima.
Os feixes se abrem, e logo se mostram não feixes, mas sim olhos, centenas, milhares de olhos ao redor de tudo, todos se entreolhando, em um céu verde claro. Era possível ver agora, logo abaixo, no meio de longos campos verdes, uma árvore de proporções enormes, e suas folhas eram na verdades pontos de luz, das mais variadas cores, que pareciam por sua vez rostos, faces de pessoas.
Hugo já conhecia aquela árvore. Era a árvore de todos os sentimentos humanos, a Árvore do Coletivo. Ao redor, mais ao longe, haviam outras árvores menores; centenas delas, formando bosques, jardins, representando o coletivo de outros seres. Folhas despencavam de todas elas, mas de maneira sutil.
O garoto está agora no chão, em meio à floresta. Ele observa a magnitude colossal da árvore principal, e se protege da luz dos olhos que cobrem os céus, com sua sombra. Ele se senta à sua raiz, e começa a sentir a aura coletiva que a sombra proporcionava.
Ele então pega a maçã mais próxima à ele, um fruto vermelho escuro, em meios a outras frutos mais escuros, alguns até mesmo podres. A mordendo, ele se alimenta de pensamentos, ideias que se frutificaram. Logo após engolir, ele sente o seu gosto de raiva e de revolta.
Após algum tempo, uma brisa o atinge, e algumas folhas caem. Pouco tempo depois, outra brisa vem e a mesma coisa acontece.
Rapidamente, os ventos vão ficando mais fortes. O céu, completamente sem nuvens, começa a escurecer novamente; e com isso, trovões e figuras ameaçadoras se aproximam rapidamente.
As árvores se balançam cada vez mais forte, soltando mais e mais folhas. Hugo larga a maçã e procura por algum lugar para se proteger da tempestade, mas não há nada. O sentimento agora de medo cresce, agora que nem mesmo a proteção das árvores poderiam salvá-lo. Ao longe, ele pode ouvir vozes, milhares delas, em um uníssono terrível.
Ele começa a correr, mas a nuvem negra que se aproximava era mais rápida, mais agressiva do que qualquer outra. Em poucos instantes, ele é arrebatado por um onda de impacto, como uma frente de cavalaria de um exército.
Diversos vultos e gritos passam por ele; gemidos, urros, de dor, de angústia, de horror, que o atravessam como lanças. Ele observa, em meio à turbulência brutal, as árvores serem arrancadas do chão pela força do impacto, e com isso a enxurrada de sofrimento aumenta, com milhares de espectros agora o atropelando; almas sendo coletadas pelo Fim de Todas as Coisas, que dançava com o coro de todas as viúvas e órfãos.
Tudo é demais para o pequeno garoto, que enxerga cada rosto, cada face de todos os mortos passar diante de si; tudo passando em uma velocidade tão grande que tudo que o olhos podem ver são flashes, mas são como brasas de fogo queimando sua essência, deixando nada além de cinzas.
— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAARRRRRRRRGGHHHHHHHHHH!!!
Os pais de Hugo ouvem seu grito excruciante e contínuo e correm da sala para o seu quarto.
Entrando no local, eles veem seu filho tendo fortes convulsões na cama. Ele sangrava por todos os orifícios, manchando suas roupas e o colchão de vermelho. Se aproximando correndo para segurá-lo, eles veem os olhos virados pra dentro do crânio do garoto, sem íris.
— AI MEU DEUS!
— CHAME UMA AMBULÂNCIA, SILVIA, AGORA!
Na janela entreaberta, logo acima da cama do menino, era possível ver um brilho forte que contrastava com o céu escuro da cidade: Um grande "cogumelo" de fogo e fumaça, que mesmo de tão longe ainda podia ser visto, formando uma visão embasbacante e igualmente aterradora...
Fim do Capítulo 1.
- Capitulo 2 - Dr. Bacchus:
- 1988
— Com licença, doutor?
A enfermeira se inclina para dentro do escritório após abrir a porta. O homem de jaleco branco vira-se em direção à mesma.
— Sim?
— A Sra. Manfred já chegou.
— Ótimo. Mande-a entrar.
A enfermeira acena com a cabeça e se retira. O médico continua a assinar documentos em sua mesa por algum tempo, até que a porta do seu escritório se abre novamente, e a moça de cabelos loiros adentra o local.
— Bom dia, doutor.
— Bom dia. — Responde ele, apontando com sua mão para uma das cadeiras frente à sua escrivaninha. — Silvia Manfred, correto?
— Isso. — Diz, se sentando comportadamente na cadeira, colocando a bolsa no colo.
— E você está aqui... Por causa do seu filho, correto?
— Isso.
Ele pega uma das pastas de pacientes que está em cima da mesa e a abre, lendo a mesma de cabeça baixa enquanto continua a conversar.
— Ele já foi internado antes?
— Ahn... Bom, ele está sendo transferido pra cá de uma clínica-- Ex-clínica hospitalar. Era um Hospital-Dia.
— Entendo. Temos outros pacientes que também vieram pra cá de Hospitais-Dia.
— É, essa nova Constituição mudou tudo. - Ela dá uma risada curta, nervosa. - Eu não posso cuidar do meu filho porque eu trabalho durante o dia, então agora estou tentando encontrar algum lugar que possa... Sabe, cuidar dele...
— É claro... Mas você sabe como um hospital psiquiátrico funciona, Sra. Manfred?
— E-Eu... Sei que não poderei levá-lo pra casa mais... — Responde a moça, relutantemente.
— Sim. Ele ficará internado aqui em tempo integral. Você só poderá visitá-lo de vez em quando; dependendo da gravidade de cada caso, visitas só são permitidas uma vez por mês - ás vezes, até menos.
A moça fica de cabeça baixa, apertando a bolsa no colo com os dedos em silêncio. Ele a observa, retirando os óculos do rosto, abrindo um sorriso compadecedor.
— ... Venha, Sra. Manfred. Vamos andar um pouco, vou lhe mostrar nossas instalações.
Os dois caminham calmamente pelos longos corredores beges do hospital psiquiatrico, sem janelas. O médico, ainda com a ficha em mãos, guiava Silvia, ao seu lado, pelo local calmo e quase vazio, sendo possível ver apenas um ou outro paciente pelos corredores.
— Aqui diz que você é casada.
— É... Meu marido e eu nos separamos faz pouco mais de um ano, mas não nos divorciamos - no sentido legal da coisa - ainda.
— Entendo. E qual a relação dele com o seu filho? Ele ainda o vê?
— Ah, o meu marido... E-Ele nunca teve interesse em criar o próprio filho. Quando Hugo foi diagnosticado, as coisas só pioraram.
— Hmm-hmm... Bem, nossos esforços se concentram em tratar nossos pacientes de forma intensiva, mas ainda assim dando-lhes os cuidados especiais de que precisam, como é o caso do seu filho. Aqui, ele estará em mãos capacitadas, temos diversos funcionários que podem atender a qualquer necessidade...
A moça vai acenando com a cabeça com as palavras do médico, mas não demora muito até que seus olhos comecem a encher de lágrimas, sua face avermelhando-se para segurar o choro e o semblante triste. Quando o médico finalmente termina o discurso, ela responde com a voz trêmula:
— M-Me desculpe, é que... Meu garotinho... Não poder vê-lo todo o dia... — Ela dá um ligeiro gemido de choro, tapando então a boca com uma das mãos.
— Eu entendo o que a senhora está sentindo nesse momento, Sra. Manfred. Deixar seu filho nas mãos de estranhos é algo difícil. Mas a senhora também entende a situação em que ele se encontra, não é verdade?
— ... S-Sim. — Retruca a mãe, enxugando os olhos.
— De acordo com a ficha médica, seu filho tem esquizofrenia catatônica. Ele tem pouco ou nenhum interesse com a realidade, e tem constantes delírios e alucinações, ao ponto de deixá-lo quase em estado vegetativo; tudo isso em um garoto de apenas treze anos. Em minha experiência, um Hospital-Dia já seria ineficiente para um caso como esse. Ele PRECISA de tratamento intenso.
Silvia acena com a cabeça novamente, rapidamente se recompondo. Pouco tempo depois, o médico volta a falar.
— Vamos lá ver o seu filho.
Os dois voltam a andar pelos corredores. Eles retornam em direção à entrada do hospital, se aproximando de uma sala, próxima ao saguão, sem portas. Lá se encontravam alguns sofás e plantas espalhadas, com o lugar sendo levemente iluminado pelo sol matinal.
Adentrando então a antessala eles veem, em frente a uma TV que tinha no local, uma enfermeira com um garoto em uma cadeira de rodas. Silvia logo se apressa a se aproximar dos dois, dando uma olhada rápida no que passava na televisão preta e branca e se agachando ao lado da cadeira de rodas.
— Ele parecia estar assistindo à TV, então eu fiquei aqui com ele. — Explica a enfermeira, segurando a cadeira de rodas à sua frente.
Na tela, apareciam imagens de uma cidade litorânea, e uma estátua enorme em construção em uma pequena ilha próxima à beirada do mar; porém, o som do aparelho televisivo estava muito baixo para ser ouvido.
— Tá assistindo TV, Hugo? — Pergunta a mãe, ao lado do garoto, passando delicadamente os dedos sobre sua testa.
— kiniun ṣubu Oyo. — Murmura o garoto.
— ... O que disse, filho?
— ... O Leão de Oyó caiu. Abraça, Nanã, Jakatá caiu na lama.
Silvia abre um sorriso compadecedor e começa a acariciar o seu rosto, vendo que o filho não falava coisa com coisa. O médico então se aproxima, no que a mãe se levanta e se vira para o mesmo.
— Esse aqui é o doutor que vai cuidar de você, Hugo. Diga “oi” pra ele.
Ele observa o garoto na cadeira de rodas, completamente inerte, como se fosse um tetraplégico. Ele tinha um lenço no torso, enfiado pra dentro da gola da sua camisa, para segurar a baba que escorria constantemente da sua boca, que ficava aberta a maior parte do tempo. Seus olhos estavam apontados para a direção da TV, mas eles pareciam vazios, sem nenhum foco.
Porém, de todas as coisas sobre o garoto, o que mais chamou a atenção do médico foram seus cabelos completamente brancos, repartidos ao meio.
— Estranho, a ficha médica dele não diz que ele tem albinismo.
— Ah... Ele não tem, doutor. Após a primeira convulsão, ele começou a perder a coloração do cabelo. Os médicos da clínica disseram que o couro cabeludo dele perdeu a capacidade de produzir melanina.
— Hmm. Isso é intrigante; nunca ouvi falar disso antes.
— Até que não ficou muito estranho. É bem diferente, não é Hugo? — Diz a enfermeira, se inclinando e sorrindo para o garoto.
— Bom, sra. Manfred, se a senhora não tiver nada contra isso, já podemos internar o seu filho agora mesmo.
— Tudo bem, e-eu tenho que ir trabalhar ainda hoje... Deixa só eu pegar as coisas dele--
— Não há necessidade. Roupas, brinquedos, tudo já será providenciado pelo hospital, até mesmo pra evitar que experiências possivelmente traumáticas ligadas a certos objetos possam comprometer o tratamento.
— Ah... Entendi...
A mãe do garoto fica sem mais o que dizer. Ela então se volta novamente para o filho, se agachando em frente ao mesmo.
— ... Hugo, mamãe vai lá trabalhar, tá bom? A moça e o médico vão cuidar de você, mas... Eu volto, tá bom?
Já lacrimejando novamente, ela dá um beijo demorado na testa no filho, antes de se levantar novamente e acenar com a cabeça para a enfermeira, que junto do doutor leva o garoto embora de volta para as entranhas do hospital psiquiátrico, até sumir.
As luzes das lâmpadas no teto passam como reflexos nos olhos azuis do garoto, enquanto ele é puxado pelos corredores do hospital. Eles passam pelo que pareciam ser celas, grandes portas de ferro, onde outros pacientes ficavam.
Hugo inclina sua cabeça lentamente para o lado, ao notar algo saindo das frestas: era uma espécie de gosma preta, viscosa, que logo se mostrava escorrendo de todas as portas. A medida que o volume de gosma de cada "cela" aumentava e escorria, a mesma ia começando a mudar de cor; finalmente tornando-se todas um arco-íris de cores ao tocar o chão.
Olhando para o longo corredor de onde veio, agora completamente escuro, ele nota a presença de uma multidão de silhuetas escondidas ali, todas paradas, e aparentemente olhando para ele. O menino consegue discernir algumas figuras ali, na vanguarda da massa de gente, quando a gosma colorida finalmente toca os pés dessas silhuetas. Ele vê um homem negro, alto, sem camisa e com uma capa vermelha nas costas, segurando um grande machado dourado; ao seu lado, um homem vestido como um pássaro, de cor azul escura, e outro sujeito vestido completamente de verde, também de capa, que faziam fronte a diversas outras figuras coloridas com vestimentas exóticas como esses.
— Chegamos, Hugo!
A enfermeira vira de repente, entrando em uma das celas, e em seguida, entra outra enfermeira com uma bandeja em mãos logo atrás.
— ... Nossa, é um garoto o novo paciente?!
— Poisé, nem fala viu... Tem treze anos só o menino.
— ... E a gente vai dar esse coquetel aqui pra ele?
— Ordens do doutor.
Hugo sente-se ser carregado até a cama da pequena cela, olhando agora para o teto acolchoado do lugar. Ele sente a mão de uma das enfermeiras lhe dar coisas parecidas com pastilhas na boca, que ele só chega a engolir quando um copo frio encosta em sua boca e derrama líquido, que ajuda tudo a descer.
Ele não fecha os olhos, mas tem a sensação disso acontecer. Todas aquelas coisas que ele via, todos os movimentos, todas as cores — mesmo olhando somente para o teto —, tudo começa a desaparecer. Ele começa a ter uma visão mais próxima a que uma pessoa comum tem, uma visão mais "humana", bem parecida com a que ele tinha quando fechava os olhos para dormir.
Após um tempo incontável olhando para o teto daquele jeito, ele finalmente se levanta, dessa vez por conta própria, ficando sentado na cama. Ele limpa a baba da boca, finalmente a fechando por completo, e fica ali, olhando para a porta fechada do seu quarto até perceber que não estava sozinho.
— Você acordou.
— ... O qu--? — O garoto leva um susto, notando a presença de gente ao seu lado na cama.
Hugo vê que as duas enfermeiras ainda estavam ali, em pé. Porém, agora ele nota que as duas usavam vestidos incrivelmente apertados, com os cabelos soltos e bem maquiadas. Na bandeja de ouro que uma delas segurava, havia um prato com obreia e uma grande taça de uma bebida vermelha, parecendo vinho.
Atrás das duas, estava um homem de jaleco branco, segurando uma bengala com desenhos dourados de ramos de videira e com uma pinha na ponta. O médico se aproxima, revelando um belo homem de aparência andrógena, com longos e bagunçados cabelos castanhos, e usando uma camisa de leopardo por baixo do jaleco sem mangas, parecendo fazer parte de uma banda de hair/glam metal.
— Olá, Hugo. Sou o Dr. Bacchus.
Fim do Capítulo 2.
- Capitulo 3 - Rito de Passagem:
— Bacchus...?
Uma voz ecoa pelo bosque. Era uma voz púbere, juvenil. Logo em seguida, um vulto branco passa por entre as árvores, como um lenço de seda ao vento. Parecia flutuar de maneira calma, sem rumo.
— Io! Io! — Algo parece responder, ao longe.
O vulto então para, revelando suas formas humanas, infantis. Era um garoto, usando alguns panos brancos para cobrir o corpo. Ele parecia vagar sem rumor, perdido, até ouvir o som distante em resposta às suas súplicas, que chama a sua atenção.
Observando a mata interminável à sua frente, ele volta a vagar, tentando encontrar a origem do sonido.
— Bacchus!
— Io! Io! — Ele escuta mais uma vez, ainda longe.
Continuando a avançar sem rumo, ele avista um ser no meio do caminho, recostado em uma das árvores: Era um homem de pele morena, cabelos castanhos, costeletas na cara, e longas orelhas pontudas. Ele não usava roupas, e da cintura pra baixo ele parecia ser o que era um bode.
— Perdido, pequeno amigo? — Pergunta o mesmo, quando se aproxima do garoto.
— Ah, olá. Você conhece Bacchus?
— Enorches?
— Io! Io! — O jovem escuta o som mais uma vez, ao longe, roubando sua atenção momentaneamente.
— ... Desculpa. O que disse?
— Tens suas arma? Há mulheres naquela direção!
— Mulheres?
Quando o garoto olha na direção apontada, ele não vê mais a floresta, mas um infinito horizonte escuro à sua frente. No meio da escuridão infinita, distante dos dois, havia um grupo de mulheres em uma espécie de círculo, iluminadas por uma luz muito forte ao centro. Elas estavam todas nuas e faziam movimentos estranhos, irreconhecíveis.
— Ah... — O garoto parece ficar hipnotizado pelo corpo das moças, sentindo algo engraçado da cintura pra baixo.
— Aí está! Você não pode ir até elas sem um desses, meu amigo! Hahaha! — Diz o sátiro, apontando pra baixo no garoto.
Quando o menino percebe, ele estava segurando um bastão, envolvido por videiras e com uma pinha no topo, como a bengala que o Dr. Bacchus usava. Olhando de volta para o ser metade-bode, ele percebe que o mesmo agora também tinha o mesmo bastão.
— Pode ir primeiro, pequeno amigo! Seja iluminado! – Exclama o ser, empurrando então o garoto pra escuridão.
O rapazinho sente uma força o puxando em direção ao círculo de mulheres, vinda do bastão. Enquanto vai se aproximando, ele nota que as mulheres estavam posicionadas ao redor da forte luz de maneira oval, e dançavam de maneira desconexa, com a cabeça pra cima, como se quisessem expor sua jugular. Eram elas quem respondiam o garoto desde o começo, cantando coisas incompreensíveis para o garoto repetidamente:
— ... Dendrites! Io! Io! Briseus! Io! Io! Sabazius! Io! Io! Bromios! Io! Io! Eleutherios! Io! Io! Endendros! Io! Io! Adoneus! Io! Io! Agrios! Io! Io! Iacchus! Io! Io! Ichtus! Io! Io!...
O menino finalmente chega até o local aonde as moças dançavam freneticamente, vendo agora de perto a intensa luz que se encontrava no meio do círculo ritualístico. É então que a luz parece começar a se expandir, logo engolindo as mulheres ao redor, e não muito depois, o próprio garoto, o cegando em um clarão branco por algum tempo.
— Uma salva de palmas pra ele, pessoal!
O garoto volta a enxergar novamente. Estava em um lugar diferente, em uma grande área aberta, no pé de uma colina; parecia estar no meio de uma arena, ou palco, e lá em cima, no alto da colina, era uma vinícola, repleta de videiras por toda a parte.
Seguido da enorme ovação, Hugo então se vira, notando uma plateia presente ali em uma arquibancada de pedra, sentada de frente pra ele, parecendo um teatro; era uma platéia exótica, repleta de sátiros como aquele que ele havia visto antes, fazendo diversas peripécias com mulheres nuas, em meio a travestis, bêbados, e até mesmo centauros. Na primeira fileira, estava Dr. Bacchus, tomando vindo ao lado de um volumoso — e seminu — homem idoso, que segurava as rédeas de um burro ao seu lado com uma mão e a taça de vinho com a outra, fazendo comentários no ouvido do doutor.
Bacchus então se levanta quando o velho termina de falar com ele, subindo até o palco aonde o garoto estava. Ele se aproxima do mesmo com a taça de vinho em mãos, e a oferece.
— Abra o olho, Hugo.
O jovem então acata as ordens do médico, pegando a taça com uma das mãos e a tomando inteira. Quando o mesmo termina, ele percebe que agora era um homem adulto, notando também que usava uma toga branca e que o bastão que segurava havia se transformado em uma lança.
Logo em seguida, Bacchus põe a mão no rosto, retirando a aparente máscara que usava e colocando-a sobre o rosto de Hugo. A face de Bacchus por baixo da máscara que havia retirado ainda era a mesma, mas agora apresentava-se com barba, demonstrando uma semelhança enorme às imagens e pinturas de Jesus Cristo.
— Bem, desejo-lhe merda.
O doutor então se afasta, descendo do palco e voltando a se sentar na platéia. Hugo observa, por baixo da máscara do doutor que usava agora, duas mulheres aparecerem no palco onde ele estava, vestidas apenas com peles de leopardo e também usando máscaras como a dele. Bacchus, do assento, então grita:
— E... Ação!1990
Duas enfermeiras andam pelos corredores do hospital psiquiátrico, passando de porta em porta, uma delas com uma prancheta em mãos, enquanto a outra levava um carrinho repleto de remédios.
— ... Quem mais?
— Manfred?
— Manfred eu já mediquei hoje, às 6 horas, e ele voltou a dormir.
— Ok. Ele já deve ter acordado à uma hora dessas, vamos até ele.
As enfermeiras então se dirigem até uma das portas do local, e param em frente à mesma. Uma delas bate na porta de ferro, anunciando-se antes de abrir a porta.
— Hugo...? Você está acordado?
Ao abrir a porta ela vê lá dentro do quarto acolchoado o rapaz de 15 anos, deitado em sua cama de barriga pra cima, suas duas mãos abaixo da cabeça, sustendo-a. Ele imediatamente se levanta quando as enfermeiras aparecem, revelando então seus exóticos e longos cabelos brancos — que já batia nos seus ombros —, enquanto alongava as costas e o pescoço rapidamente.
— Bom dia, Raquel! A Fê está com você aí também, não? — O jovem anda até a porta, escorando o braço na parede e abrindo um sorriso inacreditavelmente confiante para um rapaz da sua idade, mas talvez conveniente para quem estava em um hospício.
— Ahn... Bom dia, Hugo. — Ela contem sua risada, parecendo reparar em algo nele, olhando baixo. — Você parece... Bem “animado” hoje...
O rapaz olha pra baixo e nota que estava com uma ereção, além de perceber que sua calça estava toda "manchada".
— Ah. Bem... — Ele procura o que responder por alguns segundos. — ... Talvez eu só esteja feliz de ver vocês, sabe?
Um breve silêncio se segue, com a enfermeira na porta se virando para a outra logo em seguida.
— ... Fernanda, poderia pegar roupas limpas pra ele, fazendo o favor?
De roupas trocadas, o garoto esguio sai de sua alcova, caminhando a passos rápidos e ritmados pelo manicômio. Ele atravessa os corredores do local, parecendo seguir a algum lugar específico, enquanto passa por alguns outros funcionários do instituto psiquiátrico.
Logo atrás dele, andando também de maneira intensa, estava o exótico médico de aparência andrógena, Dr. Bacchus. Seu jaleco branco sem mangas voava em sincronia com seus longos cabelos castanhos, revelando sua apertada calça de couro preta, sua camiseta de leopardo e os diversos apetrechos pelo corpo, entre brincos, colares e panos pendurados por toda parte.
O doutor cantava a música logo atrás do rapaz, de tempos em tempos correndo até uma parede e dando um golpe nela com sua adornada bengala.
— Isso mesmo, Manfred! Sinta o Rock n' Roll!
Hugo não olhava para trás, mas se sentia gradualmente mais energético com a música que podia ouvir, apertando o passo a cada baque. Ele eventualmente começa a correr, chegando rapidamente até o fim de um corredor, aonde se encontrava uma porta. Ele se aproxima em velocidade da mesma e dá uma voadora nela, a abrindo escancaradamente com a força do chute.
Quando ele atravessa a mesma, a luz forte do dia imediatamente incomoda seus olhos. O rapaz estava agora em uma curta passarela do lado de fora do manicômio, protegida por grades dos lados e em cima. Ela se encontrava no nível do segundo andar, e conectava os dois enormes prédios do hospital psiquiátrico, dando também vista para o grande pátio logo abaixo, onde podia-se ver alguns outros pacientes também.
— É, de fato, um belo dia... — Diz Bacchus, contemplando a manhã ensolarada ao lado do garoto. — ... Mas é ainda melhor quando você está chapado, não é mesmo? Hahaha...
O jovem de cabelos brancos observa o panorama a sua frente, se agarrando à grade. Ele observa os outros pacientes abaixo dele, e o Sol logo acima, no meio do céu anil. Tudo parecia chamar sua atenção, fascinando-o ao ponto dele passar alguns minutos ali, parado, mergulhado no que via.
Porém, ao contrário do que se podia esperar, ele não estava tendo nenhuma alucinação, ou nada do tipo. Tudo que via de incomum era alguma espécie de distorção ao redor das coisas e das pessoas: camadas de "auras coloridas", quase invisíveis, que tornava tudo um pouco mais vívido do que realmente era.
— Sim... É sim... — O garoto finalmente responde o doutor, abrindo um sorriso devagar. Ambos então se entreolham, e logo começam a rir juntos, como dois drogados.
Quando eles finalmente param, Bacchus o observa de cima a baixo, parecendo reparar nas roupas do mesmo, que se compunham de uma blusa e uma calça largas, cinzas, além do tênis da mesma tonalidade. O doutor metaleiro então põe a mão no seu ombro.
— ... Manfred, você sabe qual é o meu trabalho, não sabe?
— Ahn... Acho que sim... — Diz o rapaz de quinze anos, forçando suas sombrancelhas. — ... É de me ajudar, não é? Com o meu problema?
— Não, Hugo. Eu já lhe disse isso antes: Você não tem um problema. — Diz o doutor, fazendo uma pequena pausa. — Meu trabalho na verdade é de ILUMINÁ-LO.
— ... Me iluminar?
— Sim. Iluminá-lo para o mundo que o cerca. Mas pra você ser iluminado, eu não posso fazer tudo sozinho; você também tem que aceitar ser iluminado, entende?
— ... E como eu faço isso?
— Mostre o que quer! Você não pode só falar que você quer algo; se você demonstrar isso do lado de fora, você irá sentir isso do lado de dentro também, e vice-versa. Só quando fizer isso você irá entender o verdadeiro conceito de ser iluminado, Hugo.
Dr. Bacchus bate com sua bengala no peito do rapaz, abrindo um sorriso. Com as palavras dele em sua mente, Hugo o observa por alguns segundos, antes de olhar para baixo, para o próprio peito.
— ... E nós dois sabemos muito bem o que você quer, não é?
O médico andrógeno vira Hugo em direção ao final da passarela, onde a porta que se encontrava lá se abria, e uma das enfermeiras do hospital psiquiátrico aparece.
— Hugo, ai está você! — Diz a moça, se aproximando do rapaz de cabelos brancos. — Você está bem?
— ... Hm? Sim. Estou bem. — Retruca ele, olhando para o decote do vestido apertado dela, vestida igualmente às todas as outras enfermeiras que ele via. — ... E com você?
— Você tem que se encontrar com o Dr. Galba agora, se lembra? Para a terapia em grupo?
— Sim, é claro! Eu estava indo pra lá agora, estava apenas contemplando o dia primeiro. É um belo dia, não é?
— É, é um dia bonito mesmo... Bem, vamos lá então? Ele está esperando por você.
— Depois de você.
— ... E com quanta frequência você vê ele?
Uma roda de pessoas se encontravam em uma sala, todos sentados em cadeiras e todos voltados para a cabeça da roda, onde um médico que segurava uma plancheta escrevia anotações de tudo. Todos com exceção do médico e do enfermeiro no canto da sala eram pacientes, pelo que se podia notar pelas roupas, e todos escutavam enquanto um deles se pronunciava, respondendo a pergunta do doutor.
— ... Eu vejo ele sempre que estou sozinho. No pátio. Nos corredores. Na minha cela. Ele diz que eles estão atrás de mim, doutor, mas eles não podem me pegar porque tem muitas testemunhas por aqui. Vocês iriam notar se eles me sequestrassem... Não iam, doutor? — Indaga o paciente, temeroso.
— Ninguém vai te sequestrar, Antônio. O primeiro passo é entender que esse homem do governo ao qual você se refere não existe. Uma vez que você conseguir reafirmar isso para seu subconsciente, você terá forças para confrontar esse hom--
De repente, a porta do local se abre, e Hugo adentra o recinto, com todos se virando para o jovem de longos cabelos brancos. Ele se aproxima de uma das cadeiras vazias enquanto dobrava as mangas da sua blusa até os ombros, se sentando de maneira relaxada e despreocupada na cadeira.
— Ah, Hugo! Estou feliz que você finalmente se juntou a nós. Estava preocupado com você por um momento.
— Não fique, doutor. Uma de suas adoráveis enfermeiras me encontrou. — Responde, suspirando.
— Bem, pessoal, esse é Hugo Manfred, o nosso paciente mais jovem internado, e provavelmente o mais rápido em reabilitação que tivemos até hoje. Digam oi para ele.
— Oi.
— Oi...
— Oi, Hugo.
O pessoal cumprimenta o jovem, que lança olhares rápidos para todos os integrantes da roda. Ele nota uma moça do outro lado da roda, de braços cruzados no torso, pele pálida e cabelos lisos pretos como a noite escondendo parte do rosto. Ela não parecia ter mais do que 20 anos, e ambos se entreolham por alguns segundos, antes dele ter sua atenção chamada por uma voz ao seu lado.
— Uau.
— Então, Hugo. Como estava dizendo para o nosso amigo Antônio aqui, o primeiro passo de lidar com a esquizofrenia é identificar o que é e o que não é real, algo que já fizemos nas nossas sessões passadas.
O garoto apenas acena com a cabeça, olhando para o médico. Ele então nota, na porta de onde veio, logo atrás de Dr. Galba, um homem de terno e óculos escuros observando a sala, olhando diretamente para Antônio, parado como um fantasma, e que ninguém mais via.
— Já que você está agora ingressando nas nossas sessões em grupo, por que você não compartilha com os seus colegas as suas experiências com essa condição?
— ... Minhas experiências? Sobre o que você quer que eu fale, doutor?
— Você esteve em estado catatônico por mais de 3 anos. Você via muitas coisas, não via?
Todos olham atentos para o jovem. Ele devolve mais uma vez o olhar para todos, passando a mãos nos cabelos sem cor enquanto pensa.
— Vá em frente, Hugo.
— ... Eu via... Tudo. — Diz ele, fazendo outra pausa logo em seguida.
— ... Ainda vejo, na verdade. Coisas. Pessoas. Tudo meio que... Ao mesmo tempo... Ao que vocês veem agora. Entende?
— Às vezes... Eu posso ver dentro de todos vocês. O sangue que corre nas suas veias; os músculos que os dão forma. Eu vejo cada membro do seu corpo iluminar como uma lâmpada quando vocês o movem, e seus pensamentos evaporarem como fumaça para um outro lugar, repleto somente de idéias.
— Outras vezes eu posso ver tudo, como se não houvessem paredes. Eu posso ver as estrelas em uma sala fechada, e pessoas há centenas de metros de distância, todas se misturando em um show de luzes que eu não posso fazer desaparecer mesmo se fechar meus olhos.
— Às vezes eu vejo pessoas que não estão lá. Às vezes é apenas uma versão diferente da mesma pessoa, no mesmo lugar que a primeira, fazendo algo levemente diferente. Às vezes são... "Coisas", não são humanas, mas são vivas. E eles podem me ver. Interagir comigo. Falar comigo.
— Algumas vezes eu me vejo em outro lugar completamente. Tudo desse mundo aqui desaparece, dando lugar a alguma outra coisa, algum outro lugar. Às vezes é tão interessante ou tão exótico que eu me esqueço absolutamente de tudo, e fico ali apenas... Vendo tudo. Outras vezes é tão assustador que eu apenas deito no chão, fecho os olhos e cubro os meus ouvidos por horas, esperando que passe.
— Isso é o que eu vejo, ou costumava ver diariamente. Pra ser honesto, eu ainda tenho dificuldades; eu vejo tudo isso desde que eu me lembro como gente, então não sei realmente o que deveria ou não parecer... Real. Mas eu definitivamente vejo menos agora, graças aos que vocês me dão.
— ... E... É isso, eu acho.
Um longo silêncio se segue após o monólogo do rapaz. O Dr. Galba então começa a aplaudir o mesmo, seguido pouco tempo depois pelos pacientes que compunham a roda. Hugo fica sem reação, apenas acenando em gratidão para todos até que as palmas morressem novamente.
— Obrigado, Hugo, por compartilhar isso conosco. Eu não tenho idéia de como deve ser difícil para você, tudo isso que passa na sua mente, mas tenha certeza, nós vamos continuar a ajudá-lo a discernir as coisas. Você vê que, ao dizer isso em voz alta, pode fazer sentido do porque você ter sofrido de estado catatônico todo aquele tempo?
— ... Acho que sim.
O médico continua a falar, enquanto Dr. Bacchus observava tudo de um dos cantos da sala, escorado em uma parede. Ele girava a bengala na mão, revezando olhares entre o garoto de cabelos brancos, e a moça de cabelos escuros, do outro lado da roda.
— O inexperiente caçador achou o leopardo. — Diz ele, abrindo um sorriso de canto de boca.
— Abra o olho, pequeno Hugo. Abra o olho...
Fim do Capítulo 3.
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