Cancro

– Então é aqui que vou me instalar? Parece bom. Aconchegante, confortável, um pouco sujo daqui e dali, mas pelo tempo de uso dá pra relevar. Sou o primeiro hóspede ou alguém já andou xeretando minha casa nova antes? – seguiu cuspindo as palavras, sempre indiferente, prepotente e intocável. – Olha só, eu não me sinto realizado por estar aqui. Na verdade, não sei onde queria estar, mas sei onde não queria estar. Imagina se nesse exato momento eu abro os olhos e percebo que estou no meio de uma cirurgia? Aquele médico otário que nem coragem de mostrar a cara tem, de máscara; com nojo de encostar em mim, de luvas; se sentindo superior só por causa de uns anos na faculdade. Pra puta que pariu com isso, eu ia tacar o terror naquele hospital! Essa gente toda se acha muito especial, muito acima da média. Um alto cargo aqui, umas dezenas de homens fardados que obedecem a tudo como cães, ali, meia dúzia de diplomas em idiomas que ninguém dá a mínima, uma arma na cintura, a casa da mamãe de refúgio... Porra, seus estúpidos, cresçam! Raspem seus cabelos, tirem suas roupas, rasguem seus certificados; o que vocês são? – suspirou, recompondo-se. – Então, onde estávamos? Ah sim, minha nova moradia. Tem certeza de que ninguém nunca passou por aqui? Tem umas manchinhas me incomodando um bocado, mas longe de mim querer as coisas limpas de tudo. Pensando bem, isso aqui até que tá em ótimo estado! Quantos anos tem? Trinta, trinta e um?

– Vinte e nove, senhor. Quase trinta.

– Caralho, isso deve ter crescido com empregadas, babás e o diabo pra ter ficado assim. Dá pra sentir o cheiro de carinho impregnado no teto e nas paredes. Eca! Já me instalei em lugares mais novos que este e que não possuíam nem metade desse zelo. Tudo isso é por minha causa? Não sabia que eu era um hóspede tão ilustre.

– O senhor é sim, acredite. Recebemos ótimas indicações a seu respeito, esperamos que o senhor se adapte ao ambiente.

– Esperamos que ele não se adapte. – sorriu, debochado. - Então o lugar já é meu? Posso por o pé na mesa, dar umas festinhas e deixar isso aqui mais minha cara?

– Claro, claro. Preciso apenas que o senhor preencha alguns formulários e dê meia dúzia de assinaturas, nada que o senhor já não esteja acostumado. Burocracia e mais burocracia.

– Burocracia e mais burocracia. Odeio ter que fazer letra de forma para em seguida aprisionar cada uma delas em um quadradinho. Aonde fica minha liberdade de expressão? E o que diabos é considerado “letra legível”? Sei não, acho que a gente tá respeitando a minoria errada. O mundo beirando a auto destruição e eu aqui, todo humilde, tentando fazer essa galerinha acordar. Quando começar a foder tudo, não quero ouvir ninguém falando meu nome, a torto e a direito, como se eu fosse o único culpado não.

– A propósito, o nome do senhor?

– Que horror, creio que ainda não me apresentei. Muito prazer, sou o câncer do protagonista.